LOAS 30 anos: retrospectivas e projeções

Jasper Johns. Target, 1961 (Art Institute of Chicago).
Editorial do v.34 n.1 (2024)
Em dezembro de 2023 a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) faria 30 anos, era preciso marcar esta data. Como assistente social e docente que vivenciou o nascimento da assistência social ao campo dos direitos, que acompanhou a implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), vi na Revista Praia Vermelha a oportunidade para uma homenagem. A revista, de um Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, precisava prestigiar esta conquista que tem um significado especial para o Serviço Social, registrando em forma de artigos. Uma homenagem que seria também do curso de Serviço Social. A inserção da assistência social no campo dos direitos tem uma importância ímpar para o Serviço Social, principalmente a partir da Política Nacional de Assistência Social (PNAS de 2004), que consagra o assistente social como profissional obrigatório nas equipes de referência dos serviços do Sistema Único de Assistência Social (Suas). O mercado de trabalho profissional é profundamente ampliado com a inserção de gestores, técnicos e consultores nas secretarias, nas unidades de atendimento da assistência social e na assessoria aos conselhos nas três esferas de governo. Também o ensino é afetado com a expansão dos campos de estágio, dos projetos de extensão e pesquisas que têm a assistência social como objeto de análise. Solicitei à coordenação da Revista Praia Vermelha a organização do dossiê Loas 30 anos. Nesta empreitada, convidei a também assistente social Heloísa Mesquita, amiga e docente da PUC-Rio, uma referência da assistente social no estado do Rio de Janeiro, que conheci nos tempos de organização do Fórum Estadual de Assistência Social, criado na década de 1990, período de intensas reflexões e debates que foram fundamentais para a construção da LOAS (1993) e para a participação da sociedade civil nos conselhos e conferências no estado, no período anterior ao Suas. Heloísa agrega às experiências da execução, gestão, controle social e docência, além da militância junto à sociedade civil, e divide comigo a apresentação e a organização deste dossiê.
A adesão à proposta, seu acolhimento por diversos pesquisadores, resultou na aprovação de 15 artigos que trazem ricos questionamentos relacionados a diferentes regiões brasileiras, e que refletem a experiência profissional e o interesse em contribuir para os avanços do Suas. Tal adesão pôde contar com o precioso apoio de avaliadores de diferentes estados do Brasil, pessoas que convidamos por fazerem parte desta trajetória. Defensores do Suas que, de alguma forma, precisavam participar conosco, aos quais registramos nossos agradecimentos.
Além dos conceitos clássicos que envolvem uma análise de política pública, neste caso a de assistência social – como família, território, direito, proteção social, pobreza, acesso, dentre outros-, em conjunto, os artigos trazem conceitos que revelam os diferentes públicos e regionalidades, reconhecendo o quão diverso é o país, mas, também, cada região que o compõe; também as questões identitária como raça, etnia, gênero são trazidas, revelando o binômio diversidade-preconceito, o quanto ele expõe uma parte significativa da população à desproteção, e o quanto a assistência social precisa estar presente com suas ofertas. Fica evidente, no decorrer da leitura dos distintos textos, que o reconhecimento das diferentes famílias, dos diversos territórios precisam ganhar leituras amplas que extrapolem uma determinada política púbica e possibilite ver de forma integral e integrada a intra e intersetorialidade. Tal concepção faz com que seja pré-requisito uma lógica administrativa desburocratizada que considere a precisão, a necessidade, o direito. No entanto, um traço presente em alguns dos artigos desta edição comemorativa dos 30 anos da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) é a presença de referências à cultura do favor, do clientelismo, convivendo em oposição ao direito. Trinta anos após a Loas consagrar a assistência social como direito, perduram em nossas análises, conceitos e práticas antagônicos a este princípio, reflexo de que, na realidade, este direito não se materializa na letra da lei, mas precisa ser conquistado e reconquistado na prática cotidiana dos profissionais para refletir nos gestores e legisladores e, de fato, ser assegurado e acessado pela população que dele necessitar.
A decisão por uma prática operacional flexível, transparente, acompanhada por um amplo exercício do controle social e popular, sustentada por categorias e análises técnicas e dados confiáveis, é o caminho estratégico para gerar direitos, sem culpabilização das famílias, ou seja, para provocar o reconhecimento e dar concretude ao dever de Estado na oferta da proteção social. Tal oferta remete a condições objetivas de trabalho, formação, financiamento, entre outras, o que não vem ocorrendo de forma adequada, conforme trazido nos artigos.
Se, por um lado, a grande imprensa cobra do Estado, no geral, e das prefeituras em específico, soluções aos problemas que dão visibilidade as desigualdade sociais, e incomodam ao grande capital – população em situação de rua, filas para acesso à saúde, crianças e jovens fora da escola, idosos abandonados, violência, fome, etc.; por outro, apregoa um Estado mínimo, cujas medidas de austeridade cortam orçamento para as políticas sociais, resultando em descontinuidades e precarizações nos serviços e nas condições de trabalho, o que, consequentemente, reflete no acesso.
Em nossas análises permanecemos avaliando os mesmos entraves e desafios: cortes orçamentários, uso assistencialista dos serviços e benefícios, primeiro-damismo, luta por acesso e reconhecimento, controle, coronelismo, preconceito, etc. Tais problemáticas convivem com novas adversidades, o crescimento aterrorizante do conservadorismo, liderado pela extrema direita, os desastres ambientais, resultado de mudanças climáticas que reagem a décadas de predação e desrespeito aos limites da natureza, o crescimento do tráfico e das milícias que expandem seus domínios e suas guerras, o retorno às guerras e a regimes autoritários que aumentam as situações de imigração e refúgio em condições desumanas, dentre outros determinantes, que ampliam as demandas e o público da assistência social.
Problemas agravados no passado recente de desconstrução das políticas sociais, em especial o Suas, também são trazidos pelos artigos, evidenciando o (des)governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019 -2022), o ataque à democracia e aos direitos constitucionalmente conquistados, contexto em que nem mesmo idosos e pessoas com deficiência são respeitados. Os ataques ao BPC, Lei n° 14.176/21, ganham legalidade por normas regulamentadoras que restringem direitos.
O olhar voltado para os 30 anos nos instiga a pensar no futuro; o modelo econômico capitalista reproduz e exacerba as desigualdades de classe, raça, gênero. Aliás, há 30 anos atrás a questão racial, sempre marcante e determinante em nossa sociedade, não se fazia presente como questão a ser enfrentada ou explicitada nas discussões sobre a assistência social. O avanço nesta direção vem permeado de uma triste contradição: se avançamos na reivindicação do enfrentamento da questão racial na assistência social, tal avanço revela que o racismo permanece estrutural no Brasil e no mundo, e que a democracia racial precisa ser enfrentada, inclusive, na assistência social, não só pelo perfil dos usuários, em sua maioria absoluta mulheres, negras das periferias, mas, e, principalmente, pelos próprios trabalhadores do Suas. Debate que recoloca a luta pela democracia e o necessário fortalecimento dos sujeitos coletivos no centro das análises. Neste caminho, recuperar, na prática, a dimensão comunitária presente nas normativas se coloca como estratégico.
Neste caminho, chega-se aos usuários que querem sair da invisibilidade e ser enxergados em suas especificidades étnico-raciais. O acesso, mais uma vez, se coloca como problemática. A luta de indígenas e de quilombolas pela manutenção de seus territórios e pelo acesso à assistência social seja na Amazônia, ou nos sertões rurais deste imenso Brasil, exige pensar estratégias que, necessariamente, passam pelo fortalecimento dos sujeitos coletivos. Ao escrevermos esta introdução, o Brasil queima, e queima não apenas como consequência do aquecimento global, mas pela ganância perversa que envolve a desigual luta pela terra. A defesa de nossas florestas é a defesa da vida, do direito a termos futuro.
Os artigos, resultados de pesquisas com diferentes métodos de coleta de dados: levantamento bibliográfico e documental, análise de caso, diário de campo, entrevistas, avaliação de serviços e benefícios, refletem, também, avanços na produção acadêmica resultante de análises que valorizam a prática profissional. A Revista agregou autores com larga vivência e inserção na assistência social, com experiência na execução e gestão desta política, articulada à experiência acadêmica, com autores recém-chegados nesta trajetória. Análises resultantes de experiências locais, com visões de quem pôde acompanhar o Suas sob perspectivas mais amplas, inclusive na gestão federal. A mistura de profissionais da prática, pesquisadores, gestores e estudantes faz esta coletânea mais rica e plural.
Sem dúvidas, os 15 artigos representam a visão dos autores que trazem reflexões/constatações, enriquecedoras e propositivas. Neste caminho, os municípios se destacam como local privilegiado de análise. É no município que o Suas acontece, se materializa de forma mais concreta aos usuários. Percebemos que os dilemas e desafios enfrentados pela assistência social nas cidades de pequeno e médio porte não são muito diferentes dos vivenciados nas grandes e metrópoles: abrangência, falta de acesso, equipes reduzidas, desarticulação entre as políticas públicas, e que as desproteções vivenciadas pelos usuários, agravadas pela condição de pobreza, também se assemelham: abandono, abusos, desemprego, estigmas, fome, falta de moradia, preconceitos, violências, para citar os mais frequentes. Situações de vulnerabilidade e risco, que foram agravadas em um cenário de Pandemia de Covid -19, vivenciada durante um governo negacionista, que recolocou a assistência social sob a ótica da ajuda e do favor, resultando em dúvidas nas representações sociais sobre o dever do Estado em relação a esta política. Neste cenário, o Suas teve de se reinventar para sobreviver e ofertar as seguranças preconizadas. O isolamento social, a perda do trabalho, além de os problemas com a saúde, trouxeram consequências ainda mais perversas para as mulheres, que sofreram com o aumento da violência doméstica.
Aliás, continuamos a ser uma política de mulheres para mulheres, mas começamos a enxergar as diferenças. Não por acaso a questão do cuidado recai sobre a centralidade da família, questão que se coloca como desafio ao trabalho social com famílias, ou trabalho social com mulheres, chefes, ou não, de suas famílias. A PNAS – 2004, ao trazer a família para centralidade, buscava romper com o tratamento individualizado, herança do funcionalismo que fragmentava as demandas e respostas, desconsiderando as histórias de vidas e as imbricadas relações sociais atravessadas pela questão social, pelas vivências e convivências no interior das famílias, e na relação com o território. Neste intento, pode não ter considerado que tal centralidade poderia ser objeto de análise pelo seu oposto, ou seja, ao desconsiderar a composição familiar hegemônica na assistência social – mulheres chefes de família -, tal centralidade ao ser associada às práticas operacionais, por vezes mais preocupadas com os processos de trabalho dos técnicos do que com as situações de risco e ou vulnerabilidade das famílias, também pode levar a maior rigidez no acesso aos serviços e benefícios. A isto se somam às dificuldades em padronizar estruturas familiares distintas dos modelos tradicionais. Ajudar, vigiar, controlar, proteger são conceitos que se misturam no trabalho social com famílias, e reatualizam o dilema direito x caridade na representação social sobre a assistência social.
Continua a ser um desafio delimitar no escopo da proteção social o que cabe à assistência social. A resistência de parte da sociedade em superar o conservadorismo e reconhecer os direitos de cidadania ainda reflete na prática intersetorial, ainda se espera que seja a assistência social a responder pelo “pobre”, o que reflete, inclusive, na relação com o sistema de justiça. Considerando o fato de que não se possa negar alguns avanços, essa visão ecoa também no acolhimento de demandas como o uso de drogas, cuja oferta de serviços de apoio ainda vive de forma pendular entre a assistência social e a saúde, sendo atravessada por iniciativas da sociedade civil que, em geral, passam ao largo das configurações definidas pelas políticas públicas.
Já em relação às seguranças ofertadas, permanece o grande descompasso entre os serviços e os benefícios, tanto na cobertura, como na prontidão da oferta, o que retrata, entre outros fatores, a instabilidade/defasagem do cofinanciamento e o próprio entendimento sobre a segurança de renda, que ainda vive permeada de culpabilização às famílias, transmitida na forma de controle as mesmas.
Inúmeras outras abordagens, outros olhares e avaliações poderiam estar aqui. A heterogeneidade dos artigos retrata a construção, desconstrução e reconstrução da assistência social, cuja luta para se firmar como direito é bem anterior a aprovação da Loas. Aqui, o leitor irá encontrar um pouco sobre serviços nos diferentes níveis de proteção, benefícios, financiamento, gestão, usuários e controle social.
Os 30 anos nas contribuições aqui trazidas pelos diferentes autores apontam ricas análises e sugestões, e a proposta desta publicação de contribuir para o presente balanço vem acompanhada de uma aposta: o fortalecimento da assistência social como política pública, direito do cidadão, dever de Estado, fazendo valer a Seguridade Social e a justiça social onde a subordinação não tem lugar. Os problemas aqui apontados não minimizam os avanços e as conquistas que fazem do Suas hoje um sistema com financiamento público, com capilaridade em todo o território nacional, que oferta serviços e benefícios a uma parcela significativa da população.
Chama-nos a atenção que o momento de comemorar venha carregado de tantas avaliações do que não deveria ser, ou do que temos de superar, revelando o longo caminho que ainda temos a percorrer. Esta luta, todavia, não se pauta apenas pelo que precisamos avançar, mas, sobretudo, pela defesa do conquistado, já que o conquistado está em constante ameaça, inclusive em seu arcabouço legal, por uma parcela de centro-direita que não aceita que o Estado cumpra o seu papel, assegurando os mínimos sociais por meio das políticas sociais, em especial as de seguridade social.
Se for fato que há muito a fazer, e que os retrocessos são reais, é real, também, a capacidade crítica que os artigos revelam e o movimento que trazem em direção à denúncia, ao desvelamento, à visibilidade diante dos fatos que atingem o acesso aos direitos. Portanto, a oportunidade de agrupar tão ricos artigos numa revista, que marca os 30 anos da LOAS, vem acompanhada de esperanças e de desejos que a Revista possa ser alcançada por muitos, sendo fator de aglutinação, de força, de resistência e de inspiração para novos fazeres.
É importante lembrar que o momento político presente é permeado de tensões, de correlação de forças, mas não de omissão; a Conferência Nacional de Assistência Social, ocorrida em dezembro de 2024, trouxe vozes de norte ao sul do país, com muitos sons e sotaques. Lá, pudemos sentir que há um sonho que se sonha junto, que um outro cenário se vislumbra na força coletiva, não apenas por um outro Suas, mas por um outro Brasil mais democrático e plural. Que venham mais 30 anos com uma nova publicação com narrativas do direito assegurado. Parabéns a Loas, vida longa ao Suas!
Fátima Valéria Ferreira de Souza & Heloísa Helena Mesquita Maciel
EDITORAS AD HOC
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