O avanço do capital em terras quilombolas: o que vale saber pescar em rio que não tem peixe?

O avanço do capital em terras quilombolas: o que vale saber pescar em rio que não tem peixe?

Choque (instrumento de pesca usado e produzido pela comunidade Quilombo Cedro)


Em rio de muito peixe, quilombola não passa fome!
Garantir a sobrevivência, o que comer, o sustento diário da família e da comunidade, através de práticas ancestrais de pescar o peixe, envolve um saber particular, conhecimentos e tecnologias usadas para elaborar instrumentos específicos de pesca e, fundamentalmente, o acesso a áreas de uso comum, como os rios, os igarapés, os campos naturais. Soma-se a tudo isso as histórias de pescadores, de visagens, assombrações, de mitos e encantarias que alimentam o imaginário dos quilombolas de Cedro e de outras comunidades em seu entorno. Cedro é um quilombo localizado no município de Santa Rita, na região de campos naturais, no estado do Maranhão. Cedro é parte de um território quilombola que envolve outras comunidades como Palmeira, Mucura, Ilha do Mel e Ilha da Pedra. Conheci o quilombo e seus moradores em 2019, quando fazia pesquisa de pós-doutorado junto a mulheres quilombolas do Maranhão e fui convidada pelo movimento quilombola, através do Comitê de Defesa dos Povos Quilombolas de Santa Rita e Itapecuru Mirim (Coordenado por Antônia Cariongo) a coordenar a elaboração do histórico da Comunidade Cedro (e mais duas comunidades da região) para fins de certificação junto à Fundação Cultural Palmares.

Reunião com moradores do Quilombo Cedro para levantamento de informações para o histórico da Comunidade, 2019 (acervo pessoal).

Foram várias as viagens de São Luís (MA) para Santa Rita para levantar informações, conversar, aprender e registrar as histórias da comunidade. Se cabia a mim (com outros colegas pesquisadores) fazer o registro em linguagem usual das instituições para fins de certificação, o vivido, a memória, o conhecimento do lugar e a tecnologia estavam com os quilombolas de Cedro e eu tive que ir lá pra saber um pouco e traduzir para o papel o que me contaram.

O quilombo, além de sobreviver da agricultura familiar e da criação de pequenos animais, tinha na pesca uma fonte de alimentação saudável e fundamental para a comunidade. Todo o município de Santa Rita, em especial durante o verão, depende da pesca como um dos meios de subsistência. Das vezes que fui a Cedro, sempre retornava com peixe seco e farinha, produzidos pelos quilombolas e que me eram ofertados como um gesto de que ali se estabelecia uma relação de confiança. Não se saía do quilombo de mãos e nem de cabeça vazia, desde que estivéssemos dispostos a ouvir e a estabelecer laços de confiança e respeito.

Casa de forno da Dona Ivone: processo de fazer farinha de modo tradicional no Quilombo Cedro (Antônia Cariongo)


A urgência em elaborar o histórico e entrar com o processo de certificação junto a Fundação Cultural Palmares se dava pela violência e violação de direitos que aquela comunidade estava submetia por parte de fazendeiro local. O caso que acompanhamos (em 2019), depois de muitos e de serem recorrentes, deu-se em meio ao período em que fazíamos os levantamentos para o histórico da comunidade. A casa de uma senhora quilombola de 80 anos fora destruída pelo fazendeiro, que acompanhado da polícia militar invadiu o território quilombola, agrediu e ameaçou os moradores. Era comum o uso da intimidação e violência contra os quilombolas na disputa pelas suas terras. Eu também os acompanhei duas vezes à delegacia de conflitos agrários em São Luís para registrarem ocorrência contra o fazendeiro em questão. Em 2020, Cedro foi reconhecida como quilombo pela Fundação Palmares. Mas como o movimento quilombola tem dito: sem a garantia de suas terras, de seu território (sem o título coletivo da terra), o certificado de Palmares torna-se de pouco efeito: é apenas um pequeno passo em uma estrada quilométrica.

Dia desses, ao perguntar a uma companheira quilombola sobre os peixes de Cedro, soube que escassearam. Já em 2019 os quilombolas lutavam contra a passagem de um linhão de transmissão de energia elétrica que teria suas torres fincadas nos campos naturais de onde tiravam seu sustento (este é apenas um dos vários empreendimentos – dentre públicos e privados – que ameaça a sobrevivência dos quilombolas da região). Eles já sabiam que o impacto seria gigantesco e que seu modo de vida e de sobrevivência seria afetado. Desrespeitando a convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário (que prevê consulta prévia, livre e esclarecida junto à comunidade, sobre qualquer empreendimento em território Quilombola) foram instalados linhões de transmissão de energia elétrica que passam por dentro do Quilombo e seu entorno, com torres gigantesca fincadas nos campos naturais, de onde não só os quilombolas de Cedro e de outras comunidades, mas todo o município de Santa Rita, tira seu sustento.

 

Reunião no Quilombo Cedro para discutir os impactos das linhas de transmissão de energia elétrica que atravessam os campos naturais. (Antônia Cariongo)

Quando perguntei dos peixes, ouvi da companheira quilombola Antônia Cariongo que estes sumiram. O linhão chegou e os peixes se foram: Esse ano não teve peixe, é um mistério! Não tem mais peixe nos campos naturais de onde o Quilombo Cedro tirava seu sustento. Com o tempo desaparecerá também o conhecimento empregado para elaborar os instrumentos de pesca, o gosto pelo peixe e as diferentes receitas que os quilombolas aprenderam e desenvolveram a partir do pescado do rio. A passagem predatória do capital nestes territórios não acaba só com a natureza, ele destrói um modo particular dos quilombolas interagirem de forma sustentável com a natureza, acaba com um modo de produzir existências.


por Maria Raimunda Penha Soares
Professora Associada do Departamento Interdisciplinar da UFF/Rio das Ostras; Coordenadora do NEAB e pesquisadora junto a comunidades quilombolas.

Artigo científico associado

Saiba mais acessando o artigo "Quilombos e luta pelo território: organização, resistência e insurgências coletivas", de Maria Raimunda Penha Soares, publicado na Revista Praia Vermelha v.30 n.2 (2020).