Só dói quando eu respiro: que política pública é essa?
Composição com arte de Luang Senegambia Dacach Gueye. Conheça mais em Senegambia.
Não por acaso, o “racismo sem raça”, de forma naturalizada, se faz presente nos discursos e nas formulações das políticas públicas na sociedade contemporânea, a exemplo da política de extermínio da juventude negra periférica no Brasil, de modo em que tal lógica é reinventada entre os caveirões do Estado que reprimem e amedrontam os quilombos urbanos, pela qual “bandido bom é bandido morto” – em contrapartida ao investimento de uma política pública integrada aos caminhos que de fato promova a justiça social.
Trata-se que as políticas públicas historicamente construídas no Brasil refletem a herança colonial atravessada pelo racismo. Logo, os desafios contemporâneos pressupõem a urgência de uma política pública antirracista diante da lógica de desumanização refletidos nos aparelhos do Estado capitalista, principalmente quando ainda hoje o fazer político do Estado que chega no interior das comunidades cariocas traz consigo a simbologia de uma faca na caveira.
Deste modo, percebe-se que as políticas públicas no Brasil, antes de serem fortalecidas pelo Estado através do viés antirracista, são atravessadas pelos componentes racistas, conservadores e funcionais que demarcam a fragilidade e a negação do reconhecimento histórico por justiça social aos povos oprimidos e descendentes de escravizados.
Basta desvendar os nossos olhos para percebermos que — mesmo após a suposta “abolição da escravidão” no Brasil — não houve nenhum tipo de reconhecimento, pedido de perdão ou reparação aos desumanizados pelo Estado escravocrata. Pelo contrário, enraizada pelo racismo cultural, a política do apagamento histórico, da perseguição cultural, do extermínio e do abandono já mostraria a eficaz continuidade do Estado colonial, restando-se aos negros a política da não política no atravessar das gerações. A origem simbólica do antigo “Morro da Favela”, hoje denominada como Morro da Providência no Rio de Janeiro, conta bem essa história de falsas promessas e de negação dos direitos.
Entretanto, mesmo diante das lutas dos movimentos sociais que resultaram, com o passar das décadas, na Constituição Federal de 1988, bem como na lei 11.645/ 2008 (que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena) e na ascensão das epistemologias oriundas dos sujeitos marginalizados no cenário das políticas públicas (a exemplo do feminismo negro), tal avanço não tem sido suficiente para superar as barreiras estruturais do capitalismo, principalmente, diante da reconstrução do Estado neoliberal no mundo do trabalho — ao adotar as políticas restritivas de gasto (ajuste fiscal) de modo a afetar diretamente a vida de toda a comunidade.
Sendo assim, a extrema direita transvestida de libertária dá sustentabilidade a esse rito neoliberal em que não somente esvazia as políticas antirracistas como também revive as de cunho racista neste jogo político. O próprio descaso do governo passado frente a pandemia da Covid- 19 retrata essa herança da política da não política no qual sobressai o negacionismo no enfrentamento da doença e o enfraquecimento do Sistema Único de Saúde no momento de maior calamidade pública – sendo as classes subalternizadas (de maioria negra e indígena) as maiores vítimas desta tragédia.
Contudo, neste contexto em que nos é posta a lógica de sobrevivência e subsistência, a luta pela ampliação das políticas públicas antirracistas significa o enfrentamento deste modo destrutivo de reproduzir a vida. Isto é, pensar as políticas públicas pela perspectiva da defesa e efetivação dos direitos humanos se faz de extrema importância na medida em que a poesia de Solano Trindade atravessa as gerações para nos lembrar que “tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome […]”. Pois por mais que os vestígios da colonialidade e da cegueira dos nossos olhos tentam nos furtar da realidade, os mais rechaçados pelo sistema (que vivem a mais dura consequência da “questão social”) tem endereço, etnia e uma história de lutas e revolução que percorre a dor de seus antepassados e os atravessam até os dias de hoje. Ignorar esta realidade é o genocídio!
por Luiza da Costa de Deus
Mestra em Serviço Social pelo PPGSS-UFRJ. Especialista em Movimentos Sociais pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH – UFRJ).
Artigo científico associado
Saiba mais acessando o artigo "Entre a política e a política pública antirracista no Brasil: qual é a política da política pública brasileira?", de Luiza da Costa de Deus, publicado na Revista Praia Vermelha v.33 n.2 (2023).
