A relevância e atualidade das notas de Carlos Nelson Coutinho sobre a cidadania e a modernidade

A relevância e atualidade das notas de Carlos Nelson Coutinho sobre a cidadania e a modernidade

Eneraldo Carneiro (FCC – UFRJ).

O texto “Notas sobre Cidadania e Modernidade”, publicado em 1997 na revista Praia Vermelha, resulta das reflexões apresentadas por Carlos Nelson Coutinho em uma conferência pronunciada em 20 de maio de 1994. O texto aborda a relação intrínseca e sócio-histórica entre cidadania e democracia como pilares componentes da constituição da modernidade e, nela, da sociabilidade burguesa subsequente.

O leitor poderá se questionar: qual a importância dessa reflexão considerando a quadra histórica atual? As motivações são várias e de distintas ordens que se interconectam. A primeira diz respeito à indubitável contribuição desse grandioso pensador, ensaísta, tradutor e militante marxista que figurou no corpo docente da ESS-UFRJ, para a renovação do marxismo no campo da cultura, política e filosofia que advém da melhor tradição crítica de Marx, Lukács e Gramsci.

A segunda refere-se ao legado de reflexões categoriais dos referidos campos reunidos em livros, ensaios, textos clássicos e conjunturais que Carlos Nelson legou aos leitores com análises totalizantes sobre o pensamento gramsciano, o irracionalismo e a decadência ideológica do projeto burguês, elementos de história, cultura e formação do pensamento social brasileiro, a dimensão político-estética da obra de Lukács e, sobretudo, os elementos teórico-político-culturais que conformaram o projeto da modernidade e da razão dialética.

Uma terceira motivação refere-se à atualidade das questões apresentadas no ensaio aqui republicado. A necessidade premente de entender os processos históricos de constituição da cidadania e da democracia que partem de um pressuposto da dialética instaurada pela luta de classes, ou seja, não são conceitos atávicos e hipostasiados (absolutos) impregnados em sua origem grega. Nas palavras do autor, são “resultado de uma luta permanente travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo histórico de longa duração”.

Construção esta que tem como marco a Revolução Gloriosa de 1688, passa pela legitimação da monarquia constitucional europeia e a regulamentação dos direitos civis, o que impõe novos determinantes ao Estado burguês, limitando seu poder. Retrata ainda as contradições entre a perspectiva da universalidade (que se coloca como mediação diferenciada da ideia de cidadania e democracia construída pelos gregos). Nesse movimento histórico Carlos Nelson problematiza, em uma concepção marxiana, a contradição alienante inerente a esse sistema — a possibilidade de um direito universal que prioriza a proteção e as demandas impostas pelo advento da propriedade privada, legado dos contratualistas e jusnaturalistas. Esse acúmulo forjou o pensamento liberal burguês que se mantém hegemônico.

Resgatar esses elementos histórico-conceituais é fundamental para entender as mediações que conformam o projeto neoliberal vigente pois as condições de exploração da força de trabalho, camufladas pela forma mercantil, seguem mais perversas e centrais ao capitalismo como nunca, no contexto de hegemonia do capital financeirizado, portador de juros, em que a apropriação do fundo público se torna vital para a contenção de sua crise estrutural. Se revelando em um grau de destrutividade abissal atingido no atual padrão de acumulação, que apresenta como armadilhas ideo-políticas o ascenso da extrema-direita, o negacionismo científico, a difusão da ideia de que a imparcialidade política é o centro, como formas de expressão do conservadorismo reacionário.

Há ainda no ensaio uma reflexão importante sobre o papel do Estado, em sua relação com as demandas construídas pela sociedade, ou seja, a democracia em sua conexão com a cidadania determinam os moldes da ação estatal, se consolidadas de modo efetivo pela vida social. Apresenta-se, na face contemporânea do neoliberalismo, um descrédito e destruição ao legado da modernidade em suas dimensões universais, a resposta à crise e ao projeto restaurador do capital passa pelas saídas individuais – pautadas no empreendedorismo, na privatização da vida social, nas fugas aos mitos/religiões e formas de alienação, invalidando as conquistas, ainda que no campo das reformas, no âmbito dos direitos e políticas públicas.

As reflexões apresentadas por Carlos Nelson Coutinho são um chamado pertinente ao entendimento de que o projeto da modernidade (que instaurou a razão e o humanismo como pilares fundamentais à construção de uma perspectiva emancipatória, iniciada sua construção com os renascentistas e que, na defesa do autor, segue legítima) é um campo de disputas pela defesa das possibilidades abertas a esse intento — a universalização e ampliação da cidadania/democracia seguem sendo promessas abertas e que estão em constante ameaça. Haja vista a escalada do neofascismo e o acirramento da luta política abertos nas últimas décadas, a exacerbação das precárias condições de vida da classe trabalhadora (via austeridade fiscal, elevação das taxas de juros, crises climáticas) e a necessidade de qualificar — teórica e socialmente — a luta ideo-política como tarefa imprescindível, resguardadas as mediações do tempo presente, a um projeto revolucionário. Eis o convite à leitura!

por Gláucia Lelis Alves
Professora Associada da ESS-UFRJ. Coordenadora do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão Carlos Nelson Coutinho (LEPE-CNC).

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"Notas sobre Cidadania e Modernidade", de Carlos Nelson Coutinho, republicado na Revista Praia Vermelha v.34 n.2 (2024).