A escuta e o fazer

A escuta e o fazer

 

Os textos reunidos no livro Quarentena da resistência foram produzidos em duas etapas. A primeira consistiu numa parceria entre a Festa Literária das Periferias – FLUP, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, da Faculdade de Letras da UFRJ, o Ministério Público do Trabalho – MPT, a Coopcent ABC, e o Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas – CECS, da Universidade Federal do ABC.

As oficinas de produção textual da primeira etapa foram realizadas de maio a agosto de 2020, contando com a participação de vinte catadoras, que tiveram seus textos publicados no livro intitulado Carolinas, organizado por Julio Ludemir, curador e um dos fundadores da FLUP, que em 2020 celebrou os sessenta anos da publicação do Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.

Em uma das seções dessa obra, vinte catadoras narraram experiências de vida, “atualizando” o diário de Carolina Maria de Jesus, que também havia sido catadora. Alguns textos dessa primeira etapa foram incluídos no livro Quarentena da resistência, que compreende, sobretudo, o resultado da segunda etapa de oficinas, realizada entre setembro de 2020 e janeiro de 2021, quando o projeto conquistou, também, o apoio imprescindível da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

 

Quarentena da resistência: na voz de 21 catadoras
O livro integra uma ampla iniciativa lançada pela OIT e pelo MPT em 2020, com o propósito de promover o trabalho decente para pessoas em situação de vulnerabilidade.

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Em Quarentena da resistência, buscamos enfatizar o percurso de organização profissional dessas mulheres catadoras, que atuam em cooperativas de materiais recicláveis localizadas em cidades do Grande ABC Paulista, São Paulo e Maceió. Por meio de oficinas de criação de narrativas e contação de histórias, as catadoras aos poucos construíram um enredo de infortúnio e superações de obstáculos diversos, que foi a princípio relacionado ao esforço individual, e depois ao cooperativismo. Assim, soubemos onde nasceram, o que sofreram, como descobriram ou criaram estratégias de sobrevivência, de que políticas públicas se beneficiaram e quais as suas lacunas, práticas referentes ao descarte de materiais recicláveis, os riscos ao meio ambiente resultantes de novos tratamentos do lixo.

Soubemos até mesmo o que elas pensam sobre as práticas das universidades que, ao atuarem em cooperativas, tratam os catadores mais como objeto de pesquisa do que como sujeitos e parceiros de trabalho. Os movimentos críticos e autocríticos por elas manifestados ao longo da realização do projeto determinaram, em grande medida, as maneiras da equipe de coordenação se posicionar diante das suas demandas e questões prioritárias.

Os primeiros textos do livro relatam experiências individuais dessas mulheres, que terminam se cruzando pela recorrência de certas experiências comuns, como a fome e a violência doméstica. Boa parte das catadoras foi abandonada por seus maridos, ou fugiram de casa com seus filhos, encontrando nos lixões a única possibilidade de sobrevivência, ainda que de forma arriscada e humilhante. Nessa atividade, elas se valiam não apenas dos materiais recicláveis, mas também de restos de comida e de objetos descartados: as “muambas”, como elas denominam brinquedos, calçados, eletroeletrônicos, livros, entre outros achados.

 

Mulheres catadoras atuando em cooperativas de materiais recicláveis localizadas em cidades do Grande ABC Paulista, São Paulo e Maceió (reprodução: documentário “As recicláveis” / MPT e OIT-ONU)

 

Pouco a pouco, elas foram favorecidas por políticas públicas, entre as quais se destaca o incentivo à formação de cooperativas, que tornaram possível a conquista de direitos trabalhistas, bem como a disputa e a reivindicação por novas garantias. Estas foram ampliadas a partir de 2010, quando a Lei de Resíduos Sólidos foi assinada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

O processo de construção dessas narrativas exigiu estratégias diversas, com o intuito de mapear desejos, inseguranças, necessidades, e outros aspectos caros às catadoras. A começar pela metodologia da escuta, mobilizada desde logo em função do interesse em saber mais sobre essas mulheres, pertencentes a um universo social e profissional desconhecido pela quase totalidade da equipe do projeto.

Enquanto falavam, registrávamos palavras-chave recorrentes nas suas narrativas, como “burrice” (em referência a si mesmas), “catação” e “invisibilidade”. Assim, identificamos temas e problemas comuns às participantes do Quarentena da resistência que, em seguida, orientaram o desenvolvimento de nossas estratégias de trabalho nas oficinas de escrita.

É importante ressaltar que a metodologia da escuta se configurava também como um exercício de aproximação que afetava tanto a equipe quanto as catadoras. No que se refere a estas últimas, a escuta aguçava seus modos de percepção da realidade em que vivem, estimulando a autorreflexão e a criação de novos sentidos para seus fatos biográficos. A leitura, a escrita e a contação de histórias no contexto coletivo geraram condições para que, ao mesmo tempo, elas conhecessem umas às outras e descobrissem a si mesmas: uma das potências desencadeada pelo caráter transformador da literatura, definido pelas catadoras como um processo “terapêutico”.

O compartilhamento de narrativas e de emoções entre as catadoras e a equipe tornou o projeto um lugar de acolhimento à distância, através das telas que transmitiam os encontros pelo Google Meet, durante a pandemia da covid-19.

Foi possível constatar, a cada mês, uma notável mudança no comportamento da maioria das catadoras: a postura corporal dessas mulheres se abriu ao grupo, conquistaram confiança, passaram a se maquiar e até mesmo a se perfumar para os encontros virtuais, sentiram-se úteis e reconhecidas como profissionais, saíram do estado de melancolia, conforme alguns relatos que nos apresentaram durante os momentos de autoavaliação do projeto.

Através das oficinas e da publicação dos dois livros, Carolinas e Quarentena da resistência, as catadoras desenvolveram habilidades de leitura e escrita, foram contempladas por meio de matérias televisivas, jornais impressos e digitais, concederam entrevistas, participaram de lives, formaram uma rede de apoio que se manteve ativa após a conclusão do projeto, visitaram prefeituras e câmaras de vereadores, onde apresentaram seus livros e suas demandas profissionais.

Além disso, o projeto consistiu num espaço-tempo de experimentações acadêmicas. Formada por profissionais da educação popular, professores e estudantes universitários (de graduação e pós-graduação), a equipe interdisciplinar foi construindo as oficinas de maneira coletiva e sem hierarquia. Seus membros também recorreram à metodologia da escuta entre si, mobilizando teoria e prática, fazendo que se alimentassem mutuamente.

Reuniram-se, assim, pesquisa, extensão e ensino, com destaque para a função social da universidade, que disponibilizou seu potencial humano para atender às demandas de um grupo que sofre de todos os males de um país desigual, como o Brasil. E, nesse percurso, a conquista de alguma visibilidade para as catadoras representou, ainda, uma conquista de saberes diversos tanto para a equipe do projeto, quanto para os leitores dos livros em questão. Quando associados à função social, o ensino e a aprendizagem referentes ao contexto universitário correspondem a práticas em que todos, à sua maneira, se transformam, estabelecendo trocas permanentes por meio dos fluxos intersubjetivos.

por Eduardo Coelho
Professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura), da Faculdade de Letras/UFRJ. É um dos coordenadores do Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, e coordenador do programa de pós-graduação em que atua. Em 2020, foi coordenador geral das oficinas da FLUP, destinadas a catadoras de materiais recicláveis, e do projeto Quarentena da Resistência, que chegou a sua segunda etapa no ano de 2021.

Parceiro extensionista

Este conteúdo é fruto da parceria entre o projeto de extensão Conexão Praia Vermelha e o Instituto 215.